A Assembleia Legislativa do RN promoveu audiência pública, na tarde desta segunda-feira (10), para debater a necessidade da humanização do luto parental nos hospitais públicos e privados do Rio Grande do Norte. Proposto por Cristiane Dantas (SDD), o encontro contou com representantes das secretarias estadual e municipal de Saúde, médicos, assistentes sociais, enfermeiros, profissionais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e membros de entidades ligadas ao assunto.
“Um sofrimento não reconhecido. Por muitas vezes assim pode ser visto o luto parental, o contexto em que os pais perdem seus filhos. Pela lei da natureza, é a inversão da ordem, pois é desolador ver partir quem se desejou e esperou para nascer. Trazer esse tema ao debate se insere dentro de um movimento que tem crescido Brasil afora e que deve ser abordado pelo viés da sensibilidade, da empatia e, como centralizamos, pelo olhar da humanização perante essas famílias que atravessam esse acontecimento devastador e que traz grandes impactos psicológicos para os pais”, iniciou a parlamentar.
Segundo a deputada, existem diferentes formas e reação ao luto pela perda de um filho, e uma das situações não reconhecidas socialmente é quando o luto ocorre por uma perda gestacional ou infantil. E a nossa preocupação maior ao propor esta audiência pública é que nem todas as unidades de Saúde, hospitais e maternidades estão preparados ou capacitaram seus profissionais para acolher pais enlutados, enquanto a maioria de outros casais celebra a chegada de um filho.
Ainda de acordo com Cristiane Dantas, após participar de uma reunião tratando do assunto na Maternidade Escola Januário Cicco, ano passado, ela e sua equipe elaboraram uma legislação acerca do tema.
“Após esse diálogo, surgiu a Lei nº 11.357/2023, sancionada em janeiro deste ano, que determina aos hospitais públicos e privados a obrigação de adotarem procedimentos relacionados à humanização do luto materno e parental, além de protocolos visando a formação, o autocuidado e a atualização dos profissionais de Saúde. Entre os procedimentos dessa legislação, elencam-se a necessidade de assistência psicológica para os pais, a destinação de leito separado das demais parturientes e o alinhamento da comunicação entre toda a rede de acompanhamento da mãe, para evitar constrangimentos a respeito da evolução do bebê”, detalhou.
Finalizando seu discurso, a deputada destacou que um dos grandes objetivos do debate é dar publicidade à citada lei estadual, para que os hospitais, maternidades e unidades de Saúde se capacitem, prestando um atendimento, de fato, humanizado para os casos de luto parental, acrescentando que “a audiência acontece dentro de uma campanha que a cada ano se expande para o conhecimento da sociedade, que é o Julho Âmbar, mês de conscientização do luto parental”.
Psicóloga da Maternidade Escola Januário Cicco (MEJC/UFRN), Caroline Lemos começou sua fala agradecendo a todos pela sensibilidade e acolhimento.
“Este é um tema tão importante para inúmeras famílias. E a gente pode fazer muito com coisas simples, com pequenas mudanças. O luto, embora seja tão certo de que vai acontecer, é um tema do qual fugimos. E no enlutamento parental essa dificuldade se acentua. Esse processo é a tentativa de adaptação para viver no mundo sem aquela pessoa que amamos e que sempre estava conosco nos momentos mais importantes”, explicou.
A respeito do processo de luto e suas fases, Caroline Lemos disse que os sentimentos vão mudando ao longo do tempo. “Tem certas situações e vivências que facilitam e/ou dificultam o enfrentamento do luto. E, nesse processo, nós não vamos conseguir eliminar a tristeza da pessoa. Além disso, a forma como se aprende a viver o luto no contexto familiar, com os amigos, no ambiente de trabalho, enfim, vai facilitar ou dificultar a forma como se vivencia esse processo”, detalhou.
Em seguida, a psicóloga falou sobre os impactos na saúde mental de quem vive o luto parental. “Dentre as repercussões do enlutamento, quando ele não é bem cuidado, existem os sintomas depressivos, a ansiedade, os transtornos de estresse pós-traumático, a ideação suicida, o pânico, as fobias, os comportamentos autodestrutivos, o uso abusivo de álcool e drogas”, disse, complementando que ainda há as consequências físicas, como o risco aumentado para doenças cardiovasculares, o isolamento social e o afastamento do mercado de trabalho.
“Percebam que os efeitos são para além do que a gente imagina. E muitos dizem para as pessoas seguirem em frente ou olharem o lado bom da vida, mas seus corações estão dilacerados. Daí, os enlutados se sentem pressionados ou exigidos a seguir em frente. Por isso, é necessário compreender melhor o processo, para que possamos tratar a situação com uma maior humanização”, frisou.
A profissional de saúde mental elencou também os fatores que dificultam o processo de luto, a exemplo do tipo de morte e da ausência de uma rede de apoio; bem como as situações que ajudam as pessoas a lidarem com a perda, como a possibilidade de experienciar a despedida e os rituais funerais.
Ao final do seu pronunciamento, a psicóloga falou sobre o trabalho que realiza na MJEC, chamado “Projeto com amor: apoio à perda gestacional e neonatal”, o qual funciona desde 2016 e tem o objetivo de promover o cuidado integral à mulher diante da perda gestacional ou neonatal, através do acolhimento humanizado do processo de enlutamento.
Dando continuidade aos discursos, Fernanda Braga, fundadora do grupo “Picadinhas do Amor”, que atua no Estado há seis anos, disse que a equipe surgiu da união de mulheres com Trombofilia que sentiam a necessidade de partilhar suas dores e dificuldades.
“A gente ouvia dos médicos que precisava perder o bebê mais de uma vez para ser investigada. E a partir dessas dores a gente se uniu para tentar trazer à sociedade e aos profissionais um pouco das nossas necessidades. Para a nossa surpresa, hoje o nosso Instagram tem mais de 8 mil seguidores, geralmente mulheres em busca de informações, não apenas do RN, mas de todo o Brasil”, contou.
Segundo a fundadora do grupo, a orientação é voluntária e gratuita, sem qualquer financiamento público. Ela explicou ainda que o maior problema enfrentado pelos pais enlutados é a falta de acolhimento na perda.
“Diante desse cenário, a gente precisava fazer alguma coisa. Eu me senti na obrigação de procurar e achei a ‘ONG Amada Helena’, que atua há mais de dez anos no Rio Grande do Sul. Mas tudo ainda é muito novo. Quase ninguém ouviu falar no ‘Julho Âmbar’. A lei só existe aqui no RN e no RS. Porém, é um movimento muito importante. Eu, por exemplo, que perdi dois filhos, se alguém me perguntasse naquele momento o que eu queria, eu diria: ‘Não sei… Eu quero meu filho… Quero ouvir novamente os batimentos cardíacos dele’. Então, a importância de se ter profissionais habilitados para nos acolher nesse momento é inexplicável”, finalizou, emocionada.
Para a ginecologista, obstetra e especialista em infertilidade, Kyvia Mota, a reação à dor é algo particular.
“Algumas pacientes lidam bem com isso, outras desmoronam. Então, é muito individual e varia de acordo com o número de perdas. Eu já tive paciente com 13 perdas gestacionais. Naquela época não se conhecia ainda a Trombofilia, a gente só desconfiava que existia alguma coisa. E, nessa paciente, nós conseguimos que a gestação fosse adiante fazendo heparina. Ela já tinha me dito que queria interromper a gravidez, mas depois de muita conversa decidiu investir, e hoje as meninas estão bem, graças a Deus, já estão terminando a faculdade”, relatou.
De acordo com a médica, não se deve comparar situações de pacientes diferentes, pois cada caso é único.
“Mas o conhecimento da causa da perda ajuda muito as mulheres a aceitarem o acontecimento. Sabe-se hoje que 80 ou 90% das perdas gestacionais precoces têm causa genética. Então, quando a mulher toma conhecimento disso, ela pensa que a natureza a protegeu de ter um bebê com problemas genéticos, e isso facilita muito a sua compreensão. Mas quando é Trombofilia, já é bem diferente. Mesmo tratando, algumas continuam tendo perdas e seguem sofrendo, porque é uma doença que ainda conhecemos pouco”, detalhou a ginecologista e obstetra.
Kyvia Mota relatou ainda que, no início da sua carreira, sentiu-se incomodada com a falta de humanização do seu primeiro local de trabalho.
“Eu fiz residência na maternidade modelo e, quando eu cheguei aqui em Natal, fiquei muito impactada com a superlotação e a falta de humanização do lugar onde eu fui trabalhar. Eu pensava: ‘como pode uma mulher que acabou de perder o bebê ser colocada no mesmo quarto de uma que está amamentando e festejando a chegada do seu filho?’. Isso é muito dolorido, e eu nunca entendi como não separavam essas mulheres. Mas as minhas pacientes eu levava para outro local do hospital”, enfatizou.
Técnica da Rede de Atenção Materna e Infantil da Secretaria Estadual de Saúde, Ane Caroline Sobral externou as medidas pensadas pela sua equipe a fim de efetivar a nova legislação no Estado.
“Nós temos um grupo com todos os diretores de maternidades da rede de referência e nos encontramos bimestralmente. A nossa proposta é criar um protocolo estadual para padronizar os processos. Eu queria frisar aqui que a equipe da MJEC é muito parceira da gente e sempre colabora na construção desses protocolos. Nós sempre acreditamos que o melhor é construir esses procedimentos em conjunto, dentro das nossas possibilidades. Portanto, o principal objetivo é montar esses protocolos, orientar o acesso aos serviços e analisar como podemos ajudar a implementar esse olhar mais humano em toda a rede”, destacou.
Em seguida, a psicóloga do Centro de Referência em Luto da Secretaria Municipal de Saúde de Natal, Milena Câmara, desabafou que vem lutando por espaços de discussão como o de hoje há mais de 23 anos.
“Eu fico muito feliz por estarmos aqui hoje debatendo um tema tão importante e necessário, porém ainda muito desvalorizado pela sociedade de um modo geral. E essa mudança humanizada é necessária para todos, não apenas para os profissionais de Saúde. Isso porque a dificuldade de validação da perda e de um olhar cuidadoso com o luto muitas vezes começa ao nosso lado, com um companheiro, uma mãe, um amigo. Eles muitas vezes dizem que a gente tem que ser forte e seguir, mas não é exatamente essa a ajuda que precisamos naquele momento difícil”, explicou.
Segundo a representante municipal, o mundo interno da pessoa enlutada desaba, enquanto o mundo externo continua exigindo que ela siga com suas atividades normalmente.
“Não é simples, só sabe quem vive, é uma dor muito subjetiva. Pensando nisso, eu fiz um projeto para criar um centro de referência em luto em Natal, no ano de 2016. Recentemente, em 2022, eu consegui implantá-lo. O objetivo é que as pessoas enlutadas não fiquem correndo de um lado para o outro sem receber assistência. Nós consideramos, reconhecemos, respeitamos a sua dor, entendendo que é preciso um olhar especializado. Portanto, o centro hoje é uma realidade e funciona na Unidade Básica de Candelária, na Atenção Primária, e a nossa proposta é que possamos cuidar desses enlutados para que eles não adoeçam”, detalhou a psicóloga.
De acordo com Flávio Fontes, coordenador do curso de Psicologia da UFRN, no município de Santa Cruz, tudo que ele ouviu no debate reflete bastante o seu dia a dia.
“Tenho atuado no curso desde 2017 e trabalho de juntamente com o Hospital Maternidade Ana Bezerra. Nesse contato, eu fui me aproximando cada vez mais das temáticas da Psicologia Perinatal. E tudo que nós ouvimos hoje, de maneira tão emocionante, ressaltando o quão doloroso pode ser o momento da perda, nos sensibiliza bastante e reflete muito as nossas atividades diárias”, disse.
O coordenador contou ainda que se recordou de uma pesquisa que leu anos atrás em que se entrevistava profissionais de Saúde a respeito da temática.
“Uma das entrevistadas dizia: ‘a gente não fala morte, e sim, óbito’. E isso ficou marcado para mim, porque quando se fala em óbito, é algo muito impessoal e distante. Então, é importante percebermos que, para o outro, trata-se sempre de uma perda pessoal. Ainda que para o profissional aquela situação seja também um óbito, é preciso lembrar que para o outro é uma filha ou filho, não somente uma estatística. Por isso, eu acho importantíssimo que esse assunto seja trabalhado nos cursos de Saúde e sinto que ainda temos muito a percorrer”, finalizou.
Ao final da audiência, a deputada reforçou que o propósito do debate era divulgar a existência da Lei 11.357/2023, para que se somem todos os protocolos, conselhos, entidades, secretarias e grupos de apoio em prol da causa.
Ela ainda pediu a todas as maternidades, tanto públicas quanto privadas, que já comecem a implementar a referida lei no que for possível, sem esperar o Poder Público, “pois muitas ações são simples e podem ser feitas desde já, só dependem dos gestores”, concluiu a parlamenta